Mais de 33 mil ianomâmis vivem em 192 mil km2 no Brasil e na Venezuela. Têm quatro línguas separadas, mas inteligíveis pelos falantes: ianomâmi, ianomae (ou ianomam), sanema e ninam (ou ianam). Entendem-se bem, igualmente, na confecção de arcos e flechas.
Para o arco emprega-se em geral a madeira das palmeiras Bactris gasipaes -a pupunha, que em ianomae se chama "rasa sihi"-, Oenocarpus bacaba ("hoko sihi") ou Oenocarpus bataua ("kõanari sihi"). Também se usa a madeira dura das árvores do gênero Swartzia ("paira sihi").
A técnica para alisar o arco constitui capítulo à parte. A raspagem é feita com um dente canino de caititu (o porco-do-mato Tayassu tajacu, "poxe naki"). Ou, então, com a concha afiada do caramujo terrestre Megalobulimus oblongus ("sinokoma aka"). Hoje também se usam facas de metal. O polimento final fica com as folhas ásperas de Pourouma bicolor ("õema ahi").
A corda do arco se confecciona com fibras das folhas das bromeliáceas do gênero do abacaxi, Ananas ("yãma asiki"). Ela é tratada com resina vermelha da árvore Inga alba ("moxima hi"). No passado, quando Ananas ainda não era cultivada pelos ianomâmis, as cordas eram feitas com fibras da entrecasca de Cecropia obtusa ("xiki a").
As flechas dos ianomâmis chegam a medir 2 m e são feitas com os pedúnculos da cana-de-rio Gynerium sagittatum ("xaraka si"). Recebem penas de mutum fixadas com um fio delgado de algodão comum cultivado e tingido de roxo com extrato de folhas de Picramnia spruceana ("koe axihi"), ou de vermelho com o universal urucum (Bixa orellana, "nara xihi").
É melhor nem começar a falar das pontas das flechas. Há pontas em forma de arpão para matar aves, peixes e pequenos mamíferos, pontas lanceoladas para caça de grande porte, pontas entalhadas impregnadas com resinas alucinógenas que relaxam os músculos dos macacos e aceleram sua queda das árvores...
Faltaria espaço para enfileirar os nomes científicos ocidentais e ianomâmis para as dezenas de vegetais empregados. E isso tomando em conta um único utensílio do cotidiano indígena. Esses detalhes fascinantes da tecnologia indígena aparecem em profusão no livro
"Urihi A -A Terra-Floresta Yanomami", de Bruce Albert e William Milliken. Lançado pelo Instituto Socioambiental, é a primeira versão em português de um paciente trabalho de etnobotânica realizado principalmente na aldeia Watoriki, entre 1993 e 1994.
Experimente ler o capítulo intitulado "Plantas usadas para construção". A casa coletiva circular de Watoriki, uma peça maravilhosa de arquitetura, é coberta com meio milhão de folhas da palmeira rasteira Geonoma baculifera ("paa hanaki").
Seus 867 caibros foram confeccionados com madeiras de oito espécies de árvores. A maioria dos 185 postes que sustentam o telhado de duas águas são de Manilkara huberi ("xaraka ahi"), a popular maçaranduba da construção civil brasileira. São ao todo 1.627 peças de madeira no "yano", habitado desde 1993.
Albert e Milliken compilaram também mais de 200 plantas na farmacopeia ianomâmi. Trata-se de um número tão ou mais alto que o acervo utilizado por pajés de muitos outros povos amazônicos.
A maioria desses vegetais também está presente nas culturas de outros índios da região, assim como os vegetais empregados em utensílios e na construção. Mais que uma ciência e tecnologia ianomâmi, é de um núcleo amazônico de usos da floresta que fala esse belo livro.
MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008).
Blog: Ciência em Dia.( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
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