Fonte: Tribuna do Norte
Se, como nas fábulas, a paisagem natural da caatinga pudesse expressar sentimentos, seus cactos e vegetação típica adotariam uma soturna expressão de adeus. Não são positivos os prognósticos para o único bioma genuinamente brasileiro. Com as mudanças climáticas esperadas para o planeta nos próximos 100 anos, espera-se a diminuição das chuvas e o empobrecimento do solo da caatinga, o que irá praticamente extinguir o bioma e dificultar a vida de milhões de pessoas em todo o Nordeste, inclusive no Rio Grande do Norte. Ambientes semelhantes aos desertos são esperados para o Nordeste nos próximos anos.
As implicações econômicas dessas mudanças serão alvo de conferência na 62a. Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a ser realizada do dia 25 ao dia 30 de julho, em Natal. Na ocasião (26 de julho) o professor do Instituto de Pesquisas Espaciais, Paulo Nobre, irá falar sobre o tema "Mudanças Climáticas e o Nordeste Brasileiro". Nobre acredita na necessidade de modificar o modo de produção predominante no Nordeste (agricultura familiar) para se adaptar ao novo panorama climática que está por vir.
Foto: Alex Régis
Com as mudanças climáticas esperadas para os próximos 100 anos, espera-se a diminuição das chuvas e o empobrecimento do solo da caatinga
A principal conseqüência do aumento da temperatura será uma alteração no regime de chuvas. Choverá de forma mais espaçada e intensa. Ao invés de precipitações de intensidade pequena e média distribuídas pelos meses do tradicional período chuvoso, haverá algumas poucas chuvas de grande intensidade. Em termos absolutos, choverá menos. Como se sabe, a agricultura precisa de um regime de chuvas mais espaçado, com precipitações freqüentes. Além disso, essa diminuição irá prejudicar o reabastecimento das reservas de água de toda a região. "Com todas essas mudanças, pode-se dizer que a caatinga é um bioma em extinção", explica o professor Cláudio Moisés, do Programa de Pós-Graduação em Estudos Climáticos, da UFRN.
Todas essas mudanças estão inseridas no Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (cuja sigla em inglês é IPCC) de 2007. Os professores Cláudio Moisés e Francisco Alexandre, da Pós-graduação em Estudos Climáticos, fazem uma ressalva. Qualquer prognóstico em termos climáticos precisa ser relativizado. A construção do estudo é feito com tantas variáveis, e tão interligadas, que é impossível "prever" com certeza. "O que existem são modelos. Temos desde o modelo mais pessimista até o mais otimista, mas é impossível que algum consiga representar fiel e exatamente sozinho a realidade", diz Cláudio Moisés.
Mesmo assim, é importante prestar atenção no que diz o IPCC para o Rio Grande do Norte. Professores da Universidade Federal de Minas Gerais e da Fiocruz construíram cenários para o futuro das atividades econômicas do Nordeste com as mudanças climáticas. Com o aumento da temperatura e a diminuição e alteração do regime de chuvas, o Estado irá perder quase metade de suas terras disponíveis para a agropecuária. Essa diminuição deve ficar entre 47,2% e 44,7%. Isso acontecerá porque o solo ficará mais seco, pobre, sem condições de ser cultivado ou fazer crescer o pasto para o gado. A quantidade de espécies de plantas e animais diminuirá drasticamente, em alguns pontos ficando semelhante a um deserto. O RN tem 2,9 milhões de pessoas vivendo no semi-áerido.
Como se sabe, a agropecuária é uma das principais atividades de subsistência no RN. Além disso, o agronegócio é uma das principais fontes de emprego e renda. Com menos terra para o cultivo, o Produto Interno Bruto potiguar poderá diminuir entre 3,5% e 7% nos próximos 50 anos, diz o estudo da UFMG. Para o professor Paulo Nobre, do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticas, isso implica necessariamente em mudanças na forma de produção e subsistência da região. "Não se trata do fim do mundo. As tendências são desanimadoras para o atual modo de produção, mas é possível conviver e se adaptar a esses cenários", diz (veja entrevista)
Existe um deserto verde em várias regiões do RN
É impossível, hoje, visualizar de forma concreta os efeitos das mudanças climáticas no empobrecimento do solo. Mas existe um outro efeito da ação humana que provoca danos semelhantes ao esperado após o aumento da temperatura do planeta no próprio Nordeste. Para quem não sabe, existe um "deserto verde" em formação em várias regiões do Rio Grande do Norte e do Nordeste.
O fenômeno, conhecido como desertificação, dá uma idéia substancial do que pode se esperar, de acordo com os prognósticos dos meteorologistas.
Quando se fala em desertificação, o mais comum é vir à mente das pessoas a imagem de um deserto comum, com areia nua e praticamente nenhuma forma de vida. O deserto do Saara, por exemplo. Não se trata disso.
A desertificação não significa repetir a paisagem desértica tradicional no semi-árido nordestino, mas a diminuição da produtividade da terra e da diversidade de plantas e animais sobrevivendo naquele espaço. "É muito comum existir essa confusão.
Professor
A caatinga não vai ficar igual a um deserto, de fato, mas isso não significa que o problema seja menor ou menos importante", diz o professor José Adenilson, vereador pelo PT em Carnaúba dos Dantas.
A reportagem da TRIBUNA DO NORTE visitou na última semana, um dos principais pontos de desertificação do Rio Grande do Norte: o Seridó, mais especificamente o município de Carnaúba dos Dantas. Lá, a sociedade civil e o poder legislativo estão articulados para, junto à Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, construir um Plano Municipal de Combate à Desertificação. Enquanto isso não acontece - e Carnaúba será um dos primeiros municípios potiguares a conseguir esse feito - a pecuária extensiva e o corte de lenha para abastecer as cerâmicas, sem o devido cuidado, agravam o processo de desertificação. Como se sabe, 97% do território potiguar é suscetível à desertificação, o que significa que tanto podem ser desertificadas ou não. Isso vai depender da forma como o homem utiliza o ambiente para produzir. E os primeiros relatos não são animadores.
Uma das saídas para combater a desertificação seria o governo estimular, por meio de financiamento, o uso do gás natural nas cerâmicas da região Seridó. Os estudos não sairam do papel.
Seridó hoje é terra de uma planta só
Juremas. O olhar corre do topo da serra até o chão, passando por toda uma área verde, e, com algumas exceções, o que se vê são Juremas, árvores de porte médio, folhas verdes e com propriedades psicoativas. Como os sertanejos sabem, uma das principais características da Jurema é conseguir sobreviver mesmo em situações bastante desfavoráveis. Trata-se de uma planta forte, com capacidade de se desenvolver em solos empobrecidos e hostis. A predominância da Jurema nos arredores de Carnaúba dos Dantas não é coincidência.
José Adenilson, que é geógrafo, mostrou à reportagem os efeitos da desertificação em Carnaúba dos Dantas. Nos arredores do famoso Monte do Galo, o solo pedregoso e ralo é a primeira evidência. Segundo o professor, a prática da pecuária extensiva é um dos principais causadores. "O gado acaba comendo boa parte da vegetação nascente. Dessa forma, o adubo natural do solo vai se perdendo", aponta. A extração de lenha pelas cerâmicas é outro problema, um dos maiores, de acordo com Laélia de Melo, responsável pelo combate à desertificação na Semarh. Uma cerâmica de porte médio consome um caminhão de lenha por dia, produzindo 40 milheiros de telhas. Por outro lado, cada empreendimento desse porte significa 40 empregos diretos gerados. Um teorema difícil de resolver.
A degradação da caatinga em Carnaúba dos Dantas tem resumido a biodiversidade do bioma, na cidade, a apenas uma espécie vegetal, justamente a única capaz de sobreviver numa terra tão pobre. De acordo com o professor José Adenilson, um metro quadrado de área deveria ter pelo menos 10 espécies vegetais. Em muitos locais, existem apenas Juremas. Dessa forma, a diversidade animal também é comprometida. "Toda a fauna que depende das árvores, do verde, acaba fugindo para outros locais para sobreviver", relata José Adenilson.
Para o professor, a desertificação é uma ameaça real à agricultura da região do Seridó. Ele não está sozinho. A reportagem conversou com Aldair e Josefá Dantas, casal agricultores da cidade de Carnaúba. O terreno dos dois, que trabalham na roça desde a adolescência, tem uma boa faixa atingida pelo problema da desertificação. "Tem terra aqui onde praticamente não dá mais para plantar. A gente tenta recuperar, mas é difícil. Um dia não vai dar mais para viver de agricultura nessa região", concorda Aldair Dantas.
Entrevista: Paulo Nobre - Professor Pós-doutor
Os cenários futuros para a agricultura no Nordeste podem ser pessimistas para muitos cientistas, mas não para o professor Paulo Nobre, do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticas, ligado ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Para o professor pós-doutor em Meteorologia, essa é uma oportunidade única para incentivar novas formas de produção. A convivência com todas essas questões, para Paulo Nobre, também são oportunidades de investir e gerar desenvolvimento.
A UFMG e a Fiocruz publicaram o trabalho "Mudanças climáticas, migrações e saúde: Cenários para o Nordeste Brasileiro 2000-2050" com tendências nada animadoras sobre o Nordeste brasileiro. Entre elas, a diminuição da área agricultável, dos aqüíferos e a necessidade de migrações para outras regiões. O senhor concorda com essa análise?
Conheço o estudo e concordo em parte, mas não considero essas tendências necessariamente desanimadoras. São desanimadoras tendo em vista o atual modo de produção no Nordeste. Mas podem ser vantajosas se nós considerarmos outras possibilidades a partir desse dessa tendência cada vez mais forte: o aumento da temperatura e a alteração do regime de chuvas. Para continuar plantando milho e feijão como é feito atualmente, de forma tradicional, é mesmo desanimador.
Que outras possibilidades são essas?
Formas de ampliar a renda e incentivar o emprego a partir da mitigação desses efeitos negativos. Mitigar significa diminuir. E isso pode ser conseguido em diversos níveis. Primeiro, é preciso reflorestar o Nordeste brasileiro, com espécies nativas. Isso pode minorar efeitos negativos, como o aumento da temperatura nas cidades. Para isso, utilizando mão de obra local, será possível gerar trabalho e renda. Além disso, precisa haver a capacitação de agricultores para ensinar novas técnicas de plantio. Não estamos falando ainda de agricultura irrigada, a exemplo do que acontece em Petrolina e Mossoró, porque isso representa um outro nível de investimento. Essa capacitação precisa atingir a população de baixa renda.
Isso inclui energias alternativas?
Sim, num nível ainda maior. O que eu estou defendendo é utilizar a mitigação dos efeitos negativos das mudanças climáticas e o desenvolvimento de fontes de energia limpa como indutores de desenvolvimento, gerando renda e trabalho. A Europa, no ano passado, teve 69% de sua energia de fontes limpas, como energia solar e eólica. Eles fazem isso porque são caridosos? Não, eles viram que há retorno financeiro. O Nordeste brasileiro é uma região rica dessas duas matérias-primas renováveis: vento e sol. Mas para isso é preciso um projeto de Estado e não um projeto de Governo. Não é uma iniciativa de um prefeito ou governador, mas uma decisão do Governo Federal, independente de candidato, e de toda a sociedade. Na base de tudo isso, está a educação, para que os jovens e crianças de hoje, os principais atingidos no futuro, com as mudanças climáticas, não tenham o cultivo como única fonte de renda. Eles podem produzir softwares, programas de computador, por exemplo. Mas isso somente com um investimento maciço na educação de base.
O senhor propõe uma mudança significativa em toda a forma de produzir no Nordeste?
Sim, mas isso é uma questão de tempo. Estou falando em um projeto de futuro. Mas é preciso desenvolvê-lo agora. Não é para as pessoas se desesperarem, pensando: "Agora não dá mais para fazer nada". Pelo contrário. Não se muda isso em um ano, mas em uma década é possível fazer transformações.